fonte: Folha de SP
por Cláudia Colluci, repórter especializada na área da saúde
Em tempos de tanta desinformação e retrocessos, como o visto no episódio em que o professor Elisaldo Carlini, pesquisador reconhecido nacional e internacionalmente pelos trabalhos com maconha medicinal, foi convocado a depor sobre suposta apologia às drogas, é salutar que os conselhos médicos se posicionem sobre temas polêmicos, como fez o Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) propondo a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal e novas abordagens para a questão do álcool.
Em documento divulgado sem alarde na semana passada, o conselho coloca que dois princípios devem nortear a sociedade em suas ações sanitárias no campo de uso de substâncias: o equilíbrio entre os direitos individuais e coletivos e o gradualismo responsável.
Entre as ações propostas pelo Cremesp estão uma política de regulação estrita do álcool, com restrição de publicidade, maior taxação e estabelecimentos de preços mínimos, fiscalização efetiva dos pontos de venda e de restrição de oferta a menores de idade e pessoas embriagadas, além da proibição de preço único com consumo ilimitado (open bar).
O documento também versa sobre a atuação na redução do estigma relacionado aos usuários de substâncias, como a descriminalização do porte de drogas ilícitas para uso pessoal e ampla divulgação das taxas de sucesso no tratamento médico e na recuperação. Pede ainda ampliação do financiamento público e privado da oferta de tratamento para os agravos relacionados às drogas, incluindo a expansão de formação continuada no assunto para médicos de todas as especialidades.
Em relação ao álcool, as propostas estão em consonância com uma agenda antiga dos profissionais de saúde. No entanto, pouco se avançou em relação a políticas mais restritivas. Na questão da publicidade das bebidas alcoólicas, por exemplo, a cerveja (principal bebida consumida no país) e as misturas de álcool e sucos de fruta (ices) estão fora do alcance da atual legislação, que considera bebidas alcoólicas apenas aquelas com teor alcoólico superior a 13 graus Gay Lussac.
Sobre as festas com bebida liberada, alguns estados e municípios discutem leis para pôr fim aos eventos sob o argumento de que eles incentivam o consumo excessivo de álcool por jovens, aumentando casos de violência e atendimentos médicos. A medida, porém, é vista por muitos como abusiva e mesmo em locais onde foi aprovada, acabou sendo esvaziada após pressões diversas. Em São José do Rio Preto (SP), por exemplo, as festas open bar estão proibidas, mas podem ser feitas desde que os organizadores ofereçam comida de no pacote.
Já o posicionamento do Cremesp sobre a descriminalização do porte de drogas ilícitas para uso pessoal não é exatamente novo. Em 2016, o conselho já tinha emitido nota pública a favor de que o porte de maconha para uso pessoal não fosse criminalizado. Dessa vez, o texto não esclarece sobre quais drogas ilícitas se refere, mas subentende-se de que estariam incluídas todas.
Faz sentido. Do ponto de vista de redução do estigma do usuário, nada mudaria se a proposta de descriminalização se restringisse à maconha. A verdade é que anos e anos de guerra às drogas não produziram um saldo promissor em nenhum aspecto. Nem na redução da criminalidade, nem na diminuição do número de usuários.
O fato é que não existe receita pronta para o problema de dependência química. Não há nenhuma lei que modifique o fato, por exemplo, de que o cérebro humano tem uma fraqueza para substâncias psicoativas. A sorte é que, pelo o que se sabe até agora, só uma minoria dos que experimentam uma droga (ilícita ou não ilícita) vai desenvolver uma dependência de fato.
Por princípios filosóficos, tendo a defender limites para a interferência do Estado sobre o cidadão. O direito de usar ou não drogas estaria no mesmo pacote do da liberdade de ir e vir. Por outro lado, não dá para esquecer as questões epidemiológicas e o peso das dependências de álcool, tabaco e outras drogas para os sistemas de saúde. No fim, todos pagam essa conta. Por isso, é preciso avançar em alternativas para o manejo do vício. E continuar criminalizando usuários certamente não está entre elas.